09 de Maio de 2012

Terceiro dia. As minhas energias tinham abandonado completamente o meu corpo e a minha vontade de resistir enfraquecia cada vez mais. Embora quisesse sair dali, esquecer aqueles tormentos, tinha a perfeita noção que se chegasse a casa a minha vida voltaria a ser o mesmo pesadelo monótono que nunca acabaria. Eu não queria isso de maneira nenhuma.
O Chefe não me voltou a chamar. As dúvidas assombravam-me, que queria ele dizer com "Preciso de ti"? Podiam existir milhares de explicações possíveis para essa frase, prontas a decifrar a mente encriptada do meu raptor. O que eu não entendia era a razão de ter sido eu a escolhida. Talvez fosse porque eu já estou tão habituada a viver calada em sofrimento que não me importaria de passar por mais agonia. Pois bem, o querido Chefe estava inteiramente errado, não havia alguma parte do meu corpo ou da minha mente dispostos a aceitar a submissão perante alguém. Eu tinha o direito de ser livre e ia conseguir sê-lo.
Era de noite. Sabia-o, porque a cela onde me tinham colocado - aquele mínimo espaço húmido a que eu estava restrita - tinha algures uma brecha que deixava entrar luz. E na hora em que eu reparei, só o luar iluminava as paredes podres.
Foi nessa altura que o meu cortejo real abriu a porta com uma enorme quantidade de força, aproximando-se de mim.
- Toca a acordar. - A voz de um daqueles sacanas soou no local fazendo levantar todos os pelos do meu corpo. Tinha medo deles, já tinha visto o que eles me conseguiam fazer e não fazia qualquer questão de repeti-lo. Preferia aceitar todas as suas ordens e comportar-me como uma marioneta, do que sofrer na pele o seu poder. - O Chefe quer ver-te.
Eu não sabia o caminho para o escritório. Cada vez que me levavam até lá, um saco de pano preto era-me colocado na cabeça para não ter qualquer tipo de reconhecimento sobre aquele estranho sítio. Parecia um lugar do outro mundo, a iluminação era toda superficial, não havia uma janela. Conseguia perceber isso porque mesmo com a cabeça completamente escondida, tinha a percepção dos focos de luz por onde passávamos e não havia uma única espécie de claridade. Por isso, acabei por chegar à conclusão de que estava numa construção subterrânea. Só faltava saber onde.
As portas da sala abriram-se e finalmente pude livrar-me daquele tecido nojento com cheiro a podridão. Percorri o olhar pelo que me rodeava e encontrei o Chefe sentado na sua poltrona, tal como todas as outras vezes. Talvez ele se sentisse mais poderoso se estivesse naquela posição todas as vezes que nos encontrássemos.
- Como estás hoje, pequena? - Lá estava aquele som grave e extremamente sensual que trocava os meus pensamentos de mil e uma maneiras. Dei um pequeno sorriso, sentindo-me ligeiramente confortável por encontrá-lo. Não, eu não perdoava aquele jovem criminoso pelo mal que ele provocava em mim, de todo. Mas de certa forma, ele era o único que ainda não me tinha magoado. Sabia que devia temê-lo, porém a minha consciência não conseguia acreditar que o homem diante de mim pudesse fazer-me sofrer. Afinal, ele precisava de mim.
- Já tinha saudades, caro Chefe. - Os seus lábios curvaram-se singelamente mostrando que não era só eu quem apreciava a sua companhia. Ele também gostava da minha.

Os serventes do meu raptor apressaram-se a abandonar a sala assim que este lhes indicou o caminho para fora com a mão. Sempre obedientes aquelas ratazanas.

- Suponho que esteja na altura de te explicar porque estás aqui, não é verdade? - Pronunciando-se ao fim de uns longos segundos de espera, o Chefe levantou-se e apontou para o sofá sugerindo que me sentasse. Após eu estar devidamente confortável naquele móvel almofadado agradeci mentalmente ao criminoso ao meu lado por me tirar do cubículo onde eu vivia nos últimos três dias.

- Seria agradável para variar um pouco as minhas vidas ao seu escritório. Sabe, Chefe, eu cá não gosto de rotinas. - Lancei um sorriso sarcástico na sua direcção incentivando-o a contar-me de uma vez por todas porque é que eu tinha sido raptada. Talvez não lhe agradasse dizer o seu plano maléfico a uma das suas variadas vítimas, mas algo me dizia que eu era especial.

- Como está o teu irmão? Jonathan, não é? - Aquele nome gelou todos os ossos do meu corpo, levando-me a ficar tão imóvel quanto as estátuas que costumava ver no jardim municipal. Gostava delas, apesar de me induzirem um certo receio ao aproximar-me. Pareciam-me tristes, como almas ansiosas de quebrar a pedra que as prendia ali e fugirem para bem longe onde pudessem descansar em paz. A única diferença entre mim e aquelas figuras, era que ao ouvir o meu raptor mencionar o meu irmão não me fazia ter qualquer vontade de fugir dali. Por outro lado, pela primeira vez naqueles três dias, eu de facto tive a certeza que queria permanecer num sítio horrível como aquele. - Podes respirar fundo, não te vou levar de volta para ele.

- Isso é suposto ser para me reconfortar? - Indaguei, erguendo uma sobrancelha. - Desculpe-me a indiscrição, meu querido Chefe, mas essas não são propriamente as palavras que quero ouvir de si. - Um pequeno riso escapou por entre os seus lábios. Ele sabia exactamente que eu tinha medo, no entanto,  não me podia dar ao luxo de parecer fraca e desesperada para sair dali. Na verdade, eu até gostava de jogar aquele jogo perigoso entre nós os dois.

- Quero ajudar-te, pequena. Sei que te queres ver livre dele. - A breve ideia de ver o meu próprio irmão num lago de sangue passou-me pela cabeça e deixou-me mais calma. Não havia maior desejo em mim do que presenciar a sua morte. - Por isso, tenho uma proposta para ti.

- As propostas implicam a possibilidade de recusar. Não me parece que eu tenha hipótese de escolher, não é verdade? - O seu olhar queimava sobre mim, estudando cada detalhe do meu rosto, reconhecendo todas as micro expressões que eu deixava escapar por entre a minha máscara de sarcasmo. Ele sabia perfeitamente como lidar comigo e isso deixava o jogo ainda mais interessante.

- Porquê recusar uma oferta que nos beneficiaria aos dois?

- Saiba que eu começo a ficar impaciente por ser um mero peão neste jogo todo, Chefe. E que tal dizer-me de uma vez por todas o que pretende de mim? - O meu tom de voz ergueu-se ligeriamente contrariando a minha vontade de ficar calma. Agora sim, sabendo que eu respondia exactamente da maneira que queria ao seu comportamento, ele tinha todo o poder sobre mim. Podia manipular-me de todas as formas que pretende-se e levar-me a cometer actos de loucura, se bem entendesse. Ao perceber isso, decidi acalmar-me e lutar contra o seu desejo. Aquele homem não levaria o melhor de mim.

- Estarás preparada para lidar com a verdade? - Dei uma gargalhada alta, o Chefe realmente não sabia tudo. Passara-lhe completamente ao lado saber com quem estava a lidar.

- Caro, Chefe, eu estou preparada para tudo. - Levantei-me do sofá e caminhei até ao centro da sala, sorrindo. Em seguida, virei-me para ele e encarei-o com o sorriso mais malicioso e o olhar mais desafiante que alguma vez teriam passado pelo meu rosto. - E por muito que não lhe agrade, também estou preparada para si. Agora resta é saber se o Chefe está preparado para mim.

- O que te faz pensar que não estou? - Vi-o repetir os mesmos movimentos que eu, aproximando-se de mim. Mais uma vez aquela proximidade não era nada típica de uma relação entre um raptor e uma vítima. Porém, pelo que eu tinha visto nas minhas visitar ao jovem criminoso, o que é que havia de normal em nós?

- Não sei, Chefe. Não sou eu que sei tudo. - A minha expressão desafiante aumentava cada vez mais. Por momentos pensei que pudesse controlá-lo. Imaginei uma situação completamente antagónica àquela em que eu mandava e ele era o meu submisso e, para meu erro, deixei-me levar por esse sonho.

- Parece-me que precisas de mais uns dias para reflectir, pequena. - As circunstâncias mudavam e lentamente voltavam à realidade. - Sabes, os meus rapazes estão ansiosos para voltar a brincar contigo. - O sorriso cheio de malícia abandonou a minha face e as minhas íris escureceram em fracções de segundos. O medo apoderava-se de mim em forma de dormência, alastrando-se da cabeça aos pés. - Rapazes! -  Estiquei a mão para me agarrar à camisola do meu raptor e implorar por misericórdia quando os lacaios voltaram. - Divirtam-se. -  Um grito sufocou na minha garganta, enquanto outros tantos conseguiram escapar tentanto mudar aquela decisão. Mas nada. O homem que há momentos atrás me parecera absurdamente interessante e sensual, voltara à sua forma original. Os seus olhos escuros encaravam-me sérios, desprezando a minha dor, o meu pânico. Aquele não era o Chefe. Ou talvez fosse. Passei o tempo a tentar acreditar que aquela situação não era de todo má e haveria uma maneira de dar a volta a todos os que me faziam sofrer, principalmente ao orgão mais alto daquela organização criminosa. Mas estava completamente enganada, nada mudaria.

Afinal, um monstro pode esconder-se por detrás de todas as máscaras, pode interpretar todas as personagens e fazer-nos crer que é a pessoa mais bonita do mundo, que está no auge da beleza. Mas no fim do dia, será sempre o monstro.

publicado por aalisj às 15:13

Todos os conteúdos deste blog pertencem a Aalis Jordan, como tal, é favor não copiar, plagiar, roubar e usar como seu próprio domínio. Pois à noite quando se deitarem, não estarão sozinhos nos vossos sonhos. Eles tornar-se-ão pesadelos demasiado reais. Vão ser dolorosos e sangrentos. Bons sonhos, pequenos ladrões.

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